Mais uma vez, Ferreira de Aves, está em alta na literatura Portuguesa.
Apesar da crise que Portugual atravessa, a nossa cultura literária não adormeceu, aparecem novos valores a tentarem remar contra a maré, mais uma jovem escritora em busca da fama.
Dina Rodrigues, oriunda de Duas Igrejas, Ferreira de Aves - Sátão
Apresentação da Colectânea "Ocultos Buracos" - Histórias Horríveis ou Impossíveis, da Pastelaria Studios Editora, no dia 27 de Outubro de 2012 na Fábrica Braço de Prata, em Lisboa.
São 98 histórias em torno do horrível e do impossível.
A Mulher do Roupeiro Assombrado
Sentada no cimo das escadas, Helena olha
em redor e só vê ruínas: ruínas de casas, ruínas de histórias, ruínas de vidas…
Com o pensamento perdido no horizonte, ela sente uma certa nostalgia ao
recordar a sua infância e juventude, ao recordar as férias de Verão passadas
naquela aldeia de Viseu. Ainda se lembra de quando era criança, a mãe lhe dizer
”porta-te bem, senão vou chamar o senhor chato!”. O “senhor chato”, como ela
lhe chamava, era um senhor que vivia numa casa azul, isolada no meio da mata e
que gostava de assustar as crianças. Ela, hoje recorda esta e outras histórias,
que mais pareciam um filme de terror, enquanto olha para as velhas paredes de granito.
A história que mais a marcou aconteceu quando ela tinha quinze anos.
Numa manhã soalheira do mês de Agosto, enquanto a avó
fazia os preparativos para a festa da aldeia, o João e a Helena, ao saírem de
casa, depararam-se com uma vizinha que lhes acenava e os chamava.
- João, Helena, podem chegar aqui? Por acaso não viram
uma mulher igual a mim e vestida como eu? Disseram-me que a viram a apanhar a
camioneta.
- Não! Não vimos ninguém – respondeu o João. – Mas há
alguém igual a si?
- Bom dia, tia Gertrudes, está tudo bem, o que se
passa? – perguntou a Helena.
- Meninos venham daí comigo, venham a minha casa que
eu já vos explico. Quero mostrar-vos uma coisa. Vá, venham, não tenham medo,
que eu não vos faço mal.
Assim foi. Os dois seguiram a tia Gertrudes até casa
dela. As traseiras da casa davam para o quintal da avó da Helena, mas ela nunca
lá tinha entrado. Era uma casa antiga, de pedra, portões grandes, que rangiam
muito ao abrir. Era uma entrada igual à de tantas outras casas abandonadas, lá
da aldeia. Atravessaram um pequeno pátio, com teias de aranha por todo o lado e
as paredes estavam cobertas de silvas. Uma lagartixa, apanhava sol em cima de
uma pedra, mas fugiu logo quando eles entraram. Finalmente, entraram em casa.
Até não estava muito mal… visto que era habitada por uma mulher solitária e
bastante estranha. A tia Gertrudes vivia sozinha, depois que o filho tomou
veneno e morreu. Quando os bombeiros chegaram para o socorrer, ele só dizia
”andem lá depressa senão ainda morro no caminho”. Mas já não chegaram a tempo…
e quando ele estava para morrer, ainda pediu um cigarro aos bombeiros. O último
cigarro!
- O que é que se passa aqui em casa, tia Gertrudes, o
que nos quer mostrar? – perguntou o João, com curiosidade.
- Vocês nem sabem o que me aconteceu. Apareceu-me cá
em casa uma mulher igual a mim. Venham daí que eu já vos mostro – disse ela, já
a encaminhar-se para o quarto.
- Igual a si… mas como é possível, tem alguma irmã
gémea? – perguntou a Helena, com ar irónico.
- Não! Ela veio para cá, quando eu comprei este
roupeiro. Vinha lá escondida, a malvada. Vivia lá dentro e só saía de lá quando
eu não estava em casa, mas eu via-a! Ela era igualzinha a mim. Vestia a minha
roupa, penteava-se com o meu pente, comia a minha comida e até ia à minha
carteira tirar o meu dinheiro… Eu é que eu comprava a comida e ela comia-a
toda!
- Então, ela fazia tudo o que a tia Gertrudes fazia! –
dizia o João, a rir.
- Estão a ver o roupeiro? Ela estava sempre lá dentro e
punha-se o olhar para mim… a desgraçada, mas hoje disseram-me que ela se tinha
ido embora, que a viram a apanhar a camioneta para Lisboa! – dizia a tia
Gertrudes.
- Então e ela foi assim, sem se despedir de si, nem
nada? Que malcriada! – exclamou a Helena.
- Olhe, ainda bem que ela já se foi embora. Agora já
não come mais da sua comida, nem gasta o seu dinheiro… Nós também temos de ir
embora. Até logo!
Os dois primos saíram lá de casa às gargalhadas e a comentar
que a mulher era mesmo esquisita.
- Ela via-se a ela própria no espelho – comentava a
Helena.
- Agora tiraram-lhe o espelho e disseram-lhe que a
mulher se tinha ido embora – continuava o João.
- E ela acreditou! Realmente… há cada coisa… a mulher
está mesmo maluca!
Nessa noite, por volta das três da manhã, o João e a
Helena voltavam do baile, da festa da aldeia. Subiram as escadas para casa e ao
meterem a chave à porta, sentem que estão a ser observados. Olham para o lado
do quintal e vêm dois olhos cravados neles. Dois olhos a brilhar no escuro, apenas
iluminados pela luz branca de uma vela. Dois olhos que espreitavam pela nesga
de uma janela entreaberta, de uma casa construída no alto de uma parede, já
gasta pelo tempo. No alto de uma parede de granito, trepada pelas silvas e pela
hera. Uma parede com muitas histórias para contar… histórias de namorados que
saíam do baile, na calada da noite, e se beijavam às escondidas, longe do olhar
dos pais que vigiavam as filhas “não fosse o diabo tecê-las”.
Os dois primos olharam um para o
outro, apavorados. Há tantos anos que iam passar as férias de verão à aldeia, a
casa da avó, mas sempre viram aquela janela fechada. A Helena segurava o braço do
João aterrorizada.
- Ai meu Deus, que medo! Vá, rápido… abre a porta! - gritava
ela.
Mas
a porta não abria. Aqueles olhos impediam a chave de rodar. Aqueles olhos
colaram a chave à fechadura e por mais força que o João fizesse, nada a fazia
mover.
- Tem calma, quem quer que seja, está longe, não vem
para aqui! – dizia ele para a acalmar.
João tremia de medo, talvez estivesse mais assustado
que a prima, já que ele era um medricas, que até da própria sombra tinha medo,
mas naquele dia ele tinha de aparentar ser um valentão. Era homem, tinha de ser
forte!
- Vamos embora daqui. A avó já deve estar a dormir há
muito tempo, nem nos ouve – dizia a Helena, já quase a chorar. - Avó, avó,
acorda!
Entretanto, a luz da vela sai da janela, move-se pela
parede de granito e começa a descer em direcção ao chão.
- Foge João, que é a mulher do roupeiro! – grita a Helena
em pânico.
Os dois fogem escada abaixo, a
correr e só param no recinto do baile. Chegam lá e já não há ninguém, nem
sinais de festa. O clube já está fechado, os músicos já tinham ido embora e as
pessoas também. Parecia que todos se tinham evaporado.
- E agora o que fazemos? – perguntou ela.
- Agora, vamos voltar para casa, aqui não há nenhum
hotel – dizia o João, fazendo-se de forte.
Lá foram de volta a casa, mas ao aproximarem-se, o
receio do que poderiam encontrar, paralisava as pernas e não conseguiam avançar
mais. A chave tinha ficado na porta, mas já lá não estava. Quem a teria levado?
- Agora só temos uma hipótese. Vamos voltar para o
clube. Talvez a porta esteja só encostada – sugeriu o João.
- É melhor, não vamos dormir na rua…
Mas, ao chegarem ao clube, este estava mesmo com a
porta fechada à chave. Não tinham alternativa.
- Vamos dormir debaixo do palco. Felizmente é Verão,
está calor e o fantasma não sabe que estamos lá – conclui o João, a brincar com
a situação.
Aninharam-se a um canto, perto um do outro, em cima de
umas caixas de cartão e tapados com os enfeites que sobraram do palco e das
ruas, por onde passava a procissão. Estavam, assim, em silêncio, receosos da
noite e quase a adormecer…
- João anda ali uma luz de um lado para o outro – dizia
a Helena, baixinho.
- Não sejas parva, é o vento que abana aquela árvore
que está ali em frente. Vá lá, dorme!
- João, oiço um barulho – continuava ela.
O sono foi mais forte. Deixaram-se vencer pelo sono,
pelos acontecimentos do dia, pelo cansaço e adormeceram.
Estavam a dormir profundamente, quando algo salta para
cima da Helena e crava-lhe as unhas no pescoço.
- Ai, ai! – grita ela.
- O que foi agora?
- Miau… miau… - e o gato fugiu, assustado com o grito
dela.
O dia já clareava. Com o corpo dorido, eles já só
queriam voltar para casa. Estava na hora de saírem dali, porque não queriam que
os vissem naquele estado. Como já era de dia, não ia haver velas acesas à
janela, nem fantasmas a descer pelas paredes…
- Bem, vamos para casa, que noite esta!
- Não, João, não quero ir para lá!
- Então o que vamos fazer? Não podemos ficar aqui todo
o dia debaixo do palco – resmungava ele.
- Bom dia, meninos! Então, dormiram bem?
- Tia Gertrudes!
O coração deles disparou, ao verem aquela mulher, aqueles
mesmos olhos, que viram na noite anterior, a espreitar à janela. Saíram do seu
esconderijo e desataram a fugir. Empurraram a primeira porta que encontraram
entreaberta, que por sinal era em frente à casa da tia Gertrudes, mas a
primeira coisa que viram, lá dentro, foi um homem enforcado no meio da sala.
Soltaram um grito! Voltaram a fugir, mas desta vez foram para casa deles, onde
a avó os esperava, já muito preocupada.
Ao anoitecer, nesse mesmo dia, estavam os três, o
João, a Helena e a avó, sentados na cozinha, a observar a rua, pelo vidro da
janela. Um grupo de homens transportava, enrolado numa manta, o corpo do homem
que se tinha enforcado. Tentaram levá-lo para a capela, mas o padre recusou-se
a recebê-lo na casa de Deus e voltaram a trazê-lo, de novo, para a casa dele.
Portanto, o velório ia ser feito na própria casa, na rua onde tantas histórias
horríveis e estranhas tinham acontecido.
Tantas voltas deu o corpo, pela rua, que o morto até
deixou cair um sapato, mas logo a tia Gertrudes se apressou a apanhá-lo e a
calçá-lo ao morto. Qual não é o espanto de todos, quando o morto abre os olhos,
levanta a cabeça e senta-se. Os homens, com tamanho susto, largaram logo a
manta e o homem caiu para o chão, mas depressa se levantou e começou a coxear
pela rua fora. A tia Gertrudes desmaiou com o choque e ficou estendida no meio
da rua.
- O morto ressuscitou, depois de ter estado pendurado
no meio da sala, com uma corda ao pescoço! – dizia a Helena, horrorizada.
Entretanto, ficou de noite e faltou a luz. A avó foi-se
deitar e os dois primos ficaram sozinhos, às escuras, na cozinha.
Estavam assim, os dois à janela, tão distraídos com as
andanças da rua, que nem deram por alguém abrir a porta e entrar em casa.
Ouviram um ligeiro ruído de passos atrás de si e a cozinha iluminou-se. O João
e a Helena sentiram um arrepio… Sentiram uma mão no ombro. Voltaram-se e tinham
uma vela acesa em cima da mesa.
Ficaram sem fala, brancos como a cal da parede e sem
pingo de sangue. Olharam um para o outro, mas nem sequer conseguiam dizer uma
palavra. Nem queriam acreditar no que os seus olhos viam… Atrás deles estava uma
mulher igual à tia Gertrudes, até tinha o cabelo grisalho como ela, mas a tia
Gertrudes estava estendida no meio da rua, no meio da confusão do morto
ressuscitado.
Atrás deles estava a mulher do roupeiro!
Dina Rodrigues, in Colectânea “Ocultos Buracos –
Histórias Horríveis ou Impossíveis” (Pastelaria Studios, 2012)
2 comentários:
Escritora não! Não sei se algum dia lá chego. Eu sou apenas uma aprendiz que escreve rascunhos de histórias.
Estas são de ficção, baseadas em histórias reais.
Afinal, na minha terra há muitas histórias horríveis para contar...
O livro é de 98 autores. Eu tenho apenas esta história.
Boas leituras!
Dina Rodrigues
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