sexta-feira

Fome que existe entre nós


Combater a fome é um dever de todos!

“Ainda há gente que não sabe, quando se levanta, de onde virá a próxima refeição e há crianças com fome que choram.”
(Nelson Mandela)

Há mais de 350 mil portugueses a passar fome. Entre estes, contam-se cerca de 10.500 crianças. São milhares de famílias que não têm garantida uma alimentação diária adequada.  
“Um número que nos envergonha a todos”, disse, há dias, o Presidente da República, Cavaco Silva, durante o lançamento da iniciativa “Direito à Alimentação”, da responsabilidade da AHRESP, que tem por objectivo recolher alimentos entre os seus 25 mil associados e entregá-los a “quem pouco ou nada tem para comer”.
O retrato da fome em Portugal cada vez mais é feito a negro. Carregado. Basta olharmos para os dados divulgados regularmente pelas instituições de apoio social — Cáritas Portuguesa, AMI, Legião da Boa Vontade, Banco Alimentar Contra a Fome e tantas outras — para facilmente constatarmos essa triste e dolorosa realidade. Uma realidade que tende a agravar-se face à difícil situação social em que nos encontramos mergulhados.
Ninguém pode ficar indiferente a este drama. Humano. Chocante. Até porque se trata de um fenómeno transversal a toda a sociedade portuguesa, de Norte a Sul do País. Haverá regiões mais afectadas do que outras, mas nenhuma delas escapa à existência de bolsas de pobreza e fome.

No nosso distrito, segundo adiantou recentemente a “VFM, Rádio de Vouzela”, são já cerca de quatro dezenas os refeitórios de instituições de solidariedade social e misericórdias que estão a fornecer refeições aos mais carenciados. E os números são alarmantes: 2600 refeições/dia. O concelho de Viseu é o que dispõe de maior número de cantinas sociais: nove. Os concelhos de Tondela e Lamego, possuem três cada um, seguindo-se-lhes S. Pedro do Sul com duas, Vouzela e Oliveira de Frades cada um com uma. Mas há muitas outras cantinas sociais espalhadas pelos restantes concelhos. É a “Emergência Alimentar” a justificar a solidariedade de todos.
O tema da fome não é de todo agradável. Para quem o escreve e para quem o lê. Mas não pode nem deve ser ignorado. E ganhou maior acuidade desde que, há duas semanas, foi objecto de comentários proferidos na “SIC Notícias” pela presidente do Banco Alimentar, Isabel Jonet. Por isso decidi trazê-lo à minha crónica habitual.

As palavras de Isabel Jonet provocaram uma verdadeira revolta em quem a ouviu e/ou leu, especialmente nas redes sociais. Jonet concordou com a austeridade imposta pelo governo, defendeu a necessidade de empobrecimento da sociedade e alertou para os riscos do consumo.
Temos todos de empobrecer e muito. Empobrecimento na perspectiva de regressar ao que é mais básico. Não ter expectativas de que podemos viver com mais do que necessitamos, pois não há dinheiro para isso", afirmou, dando o exemplo dos próprios filhos, que lavam os dentes com a água a correr em vez de usarem um copo: “A geração mais nova tem uma maneira diferente de viver. Deixou de se atribuir o valor real aos bens”. E concluiu: “Os portugueses têm de se habituar à ideia de que não podem comer um bife todos os dias”, sublinhando que “não há miséria em Portugal”.
Uma verdadeira bomba!
Um quase insulto aos cerca de dois milhões de portugueses que vivem no limiar da pobreza.
O Banco Alimentar Contra a Fome é uma instituição louvável, sem dúvida. Para a qual a generalidade dos portugueses se habituou a contribuir, dentro das suas possibilidades mas com imenso carinho e muita solidariedade, aquando das campanhas de oferta de alimentos. Mas mesmo os melhores projectos de caridade e solidariedade sofrem de uma espécie de pecado original: a incapacidade de ver as profundas e verdadeiras razões porque os levam a ser ainda necessários. Quem faz o discurso em defesa dos cortes sociais e afirma que não há miséria em Portugal pode continuar a ser a cara da instituição?
Isabel Jonet, ao negar a existência da miséria, da pobreza e da fome, falou como o Movimento Nacional Feminino, do qual, aliás, fez parte, no regime de antes do 25 de Abril, falava da guerra colonial. Estava tudo bem, quando nada estava bem. Mas Salazar e Caetano impunham o discurso “saudável”. Que a presidente do BACF proferia sem hesitação. Todos nós lhe reconhecemos eficiência na gestão da estrutura logística de distribuição de alimentos que, devido ao seu trabalho meritório, não vão parar ao lixo ou ficam à porta dos supermercados. Mas negar evidências é deplorável e inaceitável.
Alguém acredita que num País com uma taxa real de desemprego a rondar os 23 por cento, onde mais de um milhão sem trabalho não recebe qualquer subsídio de apoio, não há miséria, pobreza e fome?
Hoje, mais do que antes, diariamente assistimos à imagem degradante da dignidade humana de vermos pessoas à procura de restos de comida nos contentores do lixo. Uma imagem que nos fere a alma.
Aliás, quem não se lembra do fim de 2010, quando a campanha presidencial de Cavaco Silva lançou a ideia de recolher restos nos restaurantes para dar a quem “precisasse”? Nessa altura, havia, dizia-se, fome em Portugal, era preciso um sobressalto cívico e não se podiam exigir mais sacrifícios aos portugueses. Afinal, os sacrifícios ultrapassaram o limite do razoável e as condições de vida agravaram-se.
Mais do que nunca é preciso estarmos atentos aos sinais. É que, ninguém duvide, há muita pobreza envergonhada. Sobretudo nos grandes centros urbanos. Precisamos todos de estarmos vigilantes a quem nos rodeia. Na família. Nos empregos. Nos amigos. Nos vizinhos. E devemos estar disponíveis e solidários para acorrermos aos que pouco ou nada têm.
As nossas terras da Beira, como já referi, não estão imunes ao drama da fome e da miséria. É certo que, aqui, o combate pode ser menos difícil já que quase todos possuem o seu pedacinho de terra para amanhar e colher parte dos produtos para a sua alimentação. Mas isso não faz com que deixemos de estar em alerta. Nem que deixemos de contribuir nas campanhas solidárias.
Por mim, continuarei a contribuir.
Mesmo para o Banco Alimentar.
Mesmo fingindo que Isabel Jonet é como a fome e a miséria: não existe. Sabendo que ambas existem.
Por mim, prefiro dedicar a minha energia a perguntar-me o que posso fazer para que diminua este tipo de procura de bens alimentares, sinal de que haveria menos portugueses com fome.
Este é o alerta cívico e o desafio que faço questão de deixar aos leitores.
Especialmente aos meus conterrâneos.
Todos juntos, fraternalmente, seremos capazes de tornar menos pobre a vida dos menos afortunados, mais fragilizados e mais carenciados.
Lutemos para erradicar a miséria.
Enquanto ao nosso lado houver uma pessoa com fome ninguém pode estar de consciência tranquila.
A escolha não é entre “nós” e os pobres.
A escolha é mesmo nossa.
Vasco Rodrigues, in gazeta de Sátão Novembro 2012

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