segunda-feira

Cobras e lagartos


A expressão que titula a minha crónica de hoje é um dito popular utilizado quando, basicamente, “alguém diz mal de alguém”. O que, reconheça-se, em alguns meios sociais é uma espécie de “modalidade” muito apreciada e praticada.

Outros ditados existem que funcionam como “alertas”. Isto é, procuram chamar a nossa atenção para supostas realidades que não passam, afinal, de pura e refinada ficção.

Dizem que “todo o cuidado é pouco”; que “o seguro morreu de velho, mas o desconfiado ainda vive”; que “há que dormir com um olho aberto e o outro fechado”; que há que “colocar um pé atrás e o outro à frente”; e, ainda, um que aponta para “fazer o bem, mas olhar a quem”. Tudo expressões, repito, que nos sugerem precaução e contenção no ser, estar e dizer. Que podem ser sintetizadas na bem portuguesa “sentença” que diz que “cuidados e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém”.

As origens desses ditos populares, ou aforismos, remontam a muitos séculos atrás e, a autoria, na maioria dos casos, é desconhecida. “Coisas dos antigos”, recordam-nos os mais velhos. Que, no entanto, resistiram à voracidade dos tempos e, hoje, são amiudadas vezes aplicados nos mais diversos contextos no relacionamento interpessoal.

Passaram de geração em geração. Um “legado” aceite com naturalidade, não questionado e respeitado. Porque, ontem como hoje, porventura agora com mais propriedade e acuidade, faz todo o sentido a aplicação dos ditados “nada é o que parece” ou “quem vê caras não vê corações”.

Seriam desconfiados os nossos antepassados? Eventualmente, seriam. E com razão. A história que mais à frente vou contar dá solidez a essa razão dos nossos avós e remete-nos para dois outros ditos de raízes populares: “um olho no burro e outro no cigano” e, também, “um olho no padre e outro na missa”.

O avô estava longe de ser perfeito. Humano, tinha defeitos. Mas, fruto da experiência da vida, não era ingénuo. Porém, e apesar de “nas costas dos outros ver as suas”, entendia, mal, que todos eram pessoas de bem como ele, esquecendo-se da “sentença” acima referida: “cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém”.

Vivia com a minha avó e, como era seu costume dizer, “não havia mulher melhor do que ela”. Recorria a um trocadilho para ilustrar a sua admiração por ela: “era ela no céu e Deus na terra”. A união entre ambos, mais sólida que as Muralhas da China, passe a imagem de retórica, durou até ao momento em que Deus os chamou à Sua presença.

Relações, dir-se-á, “à moda antiga”. Duradouras. Consubstanciadas, sobretudo, no respeito e confiança mútuos. “Para o que desse e viesse” e “para o bem e para o mal”. Dando cumprimento e forte significado ao preceito religioso do sacramento do matrimónio: “o homem não separará o que Deus uniu”.

Hoje, porém, a realidade é outra. Bem diferente. Como comprova o caso real vivido por um casal (*) meu amigo. Cuja adoração era recíproca.

Nanda considerava como absolutamente natural sair à noite com o marido e fazerem-se acompanhar por uma sua amiga de infância, sua confidente ao longo da vida, mesmo depois do casamento. Que mal haveria nisso? — perguntava-se.

O casal residia na casa da avó do Luís. Uma boa vivenda, com algum luxo. Já entradota nos anos, carregada de experiência e tendo já vivenciado dois casamentos, muitas vezes sussurrava ao ouvido da neta, que adorava, ao mesmo tempo que abanava a cabeça: “fia-te na Virgem e não corras e verás o tombo que levas”. Um “aviso”, um conselho prático sob a forma de adágio popular.
Certa noite, Nanda espera e desespera pela chegada do Luís a casa. Os contactos, sucessivos, para o telemóvel do marido, acabavam na caixa de mensagens. A preocupação era evidente. O pânico quase se instalara. O passo seguinte seria telefonar para todos os locais possíveis. Mas eis que chega uma chamada telefónica do Luís.
 — Meu amor, onde estás, o que aconteceu?, pergunta ela com evidente nervosismo.
Mas não é o Luís quem responde. É a Nela, com a mesma voz baixa e lenta de sempre.
— Nanda, minha amiga, o Luís está a morar comigo. Estamos apaixonados e nem penses em vir ter com ele. Agora a conversa é outra e, deixa-me dizer uma coisa: essa casa da avó do Luis é grande demais só para ela, vamos morar para aí, podes ir procurar outra local para residires. Lamento muito, mas quem “vai ao ar perde o lugar”.
E desligou.
Secamente, Nanda não conseguiu sequer mexer-se. Ficou petrificada, paralisada, teve medo de morrer ali mesmo, sozinha. Na sua cabeça, ficou um vazio profundo. Viu e reviu mentalmente as imagens de quando saíam os três juntos, os momentos que passaram em cumplicidade, procurando um sinal qualquer que pudesse evidenciar uma qualquer suspeita.

Nada. Nem um. O marido e a amiga mal se falavam ou olhavam. Era sempre a Nanda quem animava as conversas, em qualquer saída para jantar ou ir a um bar. À noite. E recorda as inúmeras vezes que o Luís criticava a Nela, “sempre com a sua voz enjoada”.

Afinal, constatava agora, da pior forma, de maneira cruel até, como tudo não passava de pura e aprimorada ficção. A realidade era, completamente diferente. Que esteve sempre à frente dos seus olhos. Mas que nunca a viu.

Nunca mais vi a Nanda. O Luís e a Nela continuam juntos e, de vez em quando, vão passando pelo “Bar Metro e Meio”.

Todas as histórias, ficcionadas ou reais, como esta, têm sempre uma lição para extrair. A vida é breve, a arte é longa, a ocasião fugidia, a experiência enganosa, o julgamento difícil.
Moral desta história: “Pior que cego é aquele que não quer ver”:

(*) Os nomes aqui referidos são, obviamente, fictícios

Vasco Rodrigues in Gazeta de sátão  4/ 2012

1 comentário:

Anónimo disse...

Está muito bom ;)
muito bom ;)