quarta-feira

Crónicas da minha aldeia

Em tempo de crise, vou relatar uma história verídica que aconteceu na minha aldeia, com nomes fictícios para recordar alguma imaginação que alguns tiveram, noutros tempos, para se safarem de determinadas situações:
Naquela manhã de Primavera começava mais um dia de trabalho no campo para os mais adultos e um dia de aulas para os mais pequeninos.
Rua abaixo descia um carro de vacas potentes, a chiar sobre as pedras da calçada, rumo ao trabalho, sem hora de regresso.
Pedro e os seus amigos dirigiam-se até à aldeia vizinha para mais uma jornada escolar.
Neste percurso havia uma cerejeira que, há uns dias para cá, causava cobiça aos que ali passavam. Dia após dia, aquele fruto vermelhinho, pendurado nos ramos verdes da árvore tornava-se mais apetecido até que chegou o momento em que Pedro e o primo infringiram a lei de Deus e a lei dos homens honestos: caíram na tentação, como Adão e Eva noutros tempos, e começaram a saborear aquele fruto proibido e a encher os bolsos das calças e da camisa com cerejas graúdas e vistosas. O azar espreitou à porta quando o dono da cerejeira os observou de longe e começou, de imediato, a insultar os pequenos infractores com palavras pouco meigas. As crianças abandonaram o local e fugiram apressadamente para não serem vítimas de uns açoites.
O proprietário da árvore foi fazer queixa às mães dos respectivos transgressores e alegou que se não pagassem as cerejas roubadas faria queixa à polícia do Sátão para serem presos. A mãe de Pedro com medo que este fosse punido pela lei, preferiu pagar o prejuízo ao lesado e, mais tarde, iria fazer justiça com as próprias mãos.     
Pedro já sabia da valente sova que o esperava em casa, por isso ficou desaparecido por uns dias para tentar adiar o seu castigo. O local escolhido para se ausentar foi o forno da aldeia. Aqui descobriu algumas côdeas de pão para tentar enganar o estômago. Este sítio era também um local estratégico para controlar as saídas da mãe para o campo, para depois correr até casa e saciar a fome. A porta tinha uma fenda e por esta pequena abertura Pedro tentava chamar a atenção do irmão, com pequenos assobios e monossílabos para que este viesse ao seu encontro. António, finalmente, apercebeu-se do ruído que vinha do forno e foi até lá. Ficou surpreso ao encontrar o fugitivo da família e avisou o irmão que não escaparia da porrada que a mãe há muito lhe oferecera. Pedro tinha pensado num plano para poupar o corpo das valentes pancadas do estadulho do carro das vacas. Os dois irmãos dirigiram-se ao palhal da eira e começaram por preencher a roupa com feno. O corpo ficou todo forrado com esta matéria para que, na hora da punição materna, servisse de protecção ao sofrimento físico.
Chegou o momento do Pedro se apresentar à mãe e aí começou a justiça com as próprias mãos e com o estadulho (objecto presente nas horas em que a mãe se zangava com os filhos). Como era de esperar, a mãe de Pedro não admitia este tipo de deslizes aos filhos, portanto começou a cena de pancadaria. Porém, Pedro fingia com altos gritos para que a mãe se compadecesse, mas esta não dava tréguas. Pancada sobre pancada, o amigo fiel começa a dar o ar da sua graça e começa a ser expulso da camisola, ao fundo das costas. Nesse momento, a mãe larga o estadulho e o cenário de violência foi substituído pelo riso e pelo perdão.
Naquele dia, o feno foi mais do que um advogado de defesa para Pedro, visto que o safou das pancadas brutas do estadulho e à tarde poupou-lhe uma ida ao palhal para ir buscar um feiche de feno para o ceote das vacas.
Moral da história: alguns obstáculos da nossa vida que julgamos não ter salvação, existem pequenos pormenores que ajudam a contornar e a superar certos problemas.
Sónia Ferreira

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