terça-feira

O Natal do meu descontentamento



Esta é a crónica que gostaria de nunca escrever.

Porquê? Porque, em tempo de Natal, é suposto falar-se do espírito mágico que a época encerra, falar-se de fraternidade, de paz e de alegria na evocação do nascimento do Menino Jesus.

Por esta altura, é quase obrigatório falar-se e escrever-se com palavras enfeitadas com laços de ternura. Porém, os dias que vivemos - duros, cruéis e brutais - impelem-nos a olhar e a reflectir, antes, sobre a realidade que a todos toca. Uma realidade que nos preocupa, que nos atormenta, que nos rouba o pulsar da alegria plasmada na «noite bendita, a mais bonita, noite serena, cheia de luz», e nos enche o coração de medo.

Estamos a viver, caros Amigos e leitores, um tempo que, de temperança, pouco ou nada tem. Neste País que é o nosso, com quase nove séculos de História, que deu novos mundos ao Mundo, que foi Império, o Natal de 2009 é marcado, de forma indelével, por uma tremenda angústia. Talvez como em nenhum outro momento.

Porque conheço as gentes portuguesas, as gentes beirãs, porque conheço as gentes da minha terra, dificilmente acredito que, na Santa Noite da Consoada, no aconchego de cada lar, em amenidade e harmonia familiar, sentados a uma mesa mais rica ou mais pobre, que haja uma só pessoa que deixe de pensar nos que não têm Natal. Em todos aqueles para quem as luzes que enfeitam o pinheiro perderam o brilho. Em todos aqueles que mergulharam na desesperança e no sofrimento. Em todos aqueles para a quem a «noite de todos os sonhos » vai deixar no sapatinho apenas e só dor. Uma imensa dor. Em todos aqueles que vão viver um Natal pouco doce e muito menos suave.

Para muitas centenas de milhar de portugueses não há nem espírito nem" milagre de Natal".

Que Natal pode haver para os desempregados e sem expectativa de conseguir um novo emprego?
Que Natal pode haver para os reformados que, após uma vida de árduo trabalho, recebem como pensão uns míseros euros que mal dão para pagar os remédios?
Que Natal pode haver os que sofrem em hospitais que tardam semanas, meses e anos a realizar uma cirurgia?
Que Natal pode haver para os jovens que, em cada dia que passa, vêem as suas legítimas esperanças no amanhã transformadas em sofrida desilusão?
Que Natal pode haver para os que não têm pão nem casa nem, sequer, já esperança?
Que Natal pode haver para todos os que se são injustiçados por uma Justiça tardia, ineficaz e quase sempre pouco justa?
Que Natal pode haver para os que perderam as suas poupanças de uma vida, por causa da ganância de uns quantos doutores e engenheiros para quem só o dinheiro conta e ficam impunes?
Que Natal pode haver para todos os que vêem os pobres ficar mais pobres e os ricos cada vez mais ricos?

Num mundo em que a fome, a solidão, as guerras, os desencontros, os desamores, a arrogância, o roubo e a ganância prevalecem não pode haver nem sentido, nem espírito de Natal.

Neste quadro reafirmo, Amigos e leitores, que esta é a crónica que não gostaria de escrever. Porque é a crónica sobre o Natal do meu descontentamento. 

Sei, todavia, que em nenhum outro momento tão concreto como o que vivemos hoje os portugueses terão sentido a necessidade, diria que imperiosa, de acalentar uma esperança que só o Natal em todos incute. E é essa palavra de esperança que, apesar de tudo, quero deixar aqui. A todos. Sem excepção. Que sejamos capazes de com esforço e sacrifício, irmanados do espírito possível de Natal, transformar a tormenta de hoje num amanhã de bonança.

Um Bom e Santo Natal para todos.

Vasco Rodrigues

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