sábado

Ano Novo: um imenso «pingo amargo»

 Num País marcado por uma profunda desigualdade social mais que nunca é necessária a solidariedade de todos.

1. Bem gostaria na primeira crónica de 2012 deixar plasmado algum optimismo relativamente aos tempos que aí vêm. Porém, a realidade que vivemos, aconselha-me a ser prudente nas palavras e, sobretudo, contido no entusiasmo.
Despedimo-nos de 2011 sem notória saudade. As dificuldades, o aperto, a austeridade sentidas (já) refreavam os ímpetos dos mais confiantes, não augurando nada de novo nem de bom. Prova disso, foi a noite de passagem de ano. Os céus do País (e de quase toda a Europa) foram menos coloridos pelo foguetório pirotécnico e o champanhe jorrou em menor quantidade. A festa, essa, ainda que vivida com alegria, confirmando o adágio popular «tristezas não pagam dívidas», já não durou até às tantas.

2. Os portugueses acordaram na manhã do primeiro dia de 2012 com um forte abanão nos seus orçamentos familiares. Múltiplos serviços, produtos e bens tinham novos e mais elevados custos para os consumidores. A asfixia financeira tornou-se mais forte. E o anúncio oficial, através da Mensagem de Ano Novo do Presidente da República, não deixava margem para dúvidas: «Avizinham-se tempos ainda de maiores dificuldades». Hoje, essas dificuldades são conhecidas. Sentidas e vivenciadas. E, repito, o que está para vir não pode deixar ninguém nem indiferente nem tranquilo.

3. Os primeiros 15 dias deste novo ano trouxeram acontecimentos que geraram perplexidade e indignação na sociedade portuguesa e foram pasto de vasta polémica. As ondas de choque ainda se fazem sentir e a tranquilidade não se vislumbra. Recordemos, então, alguns desses factos que deixaram o País à beira de um ataque de nervos e o Governo, particularmente o Primeiro-Ministro, muito «tremidos» na fotografia.

4. Um «Pingo Amargo». A família Soares dos Santos, principal accionista (56,14%) da rede de supermercados «Pingo Doce» e «Recheio», transferiu o seu capital para a Holanda. Ou seja, deixa de pagar impostos em Portugal. E importa lembrar que, no 1.º semestre de 2011, o lucro da rede da «Jerónimo Martins» foi de 144 milhões de euros. Alexandre Soares dos Santos, patriarca da família, o homem que nos últimos anos não fez outra coisa senão dar lições de moral aos portugueses, em sucessivas entrevistas e programas de televisão, mandou às urtigas o interesse nacional. O povo que suporte o agravamento fiscal. Ele foi vender mercearias para outra freguesia e continuar a rechear os bolsos.

5. Sem querer particularizar situações, não podia deixar de focalizar este facto que mostra, de forma clara, a corrupção moral que vai apodrecendo o País e como este é controlado e gerido por um poder económico sem escrúpulos. Um poder que se apropria da riqueza de todos para alimentar e enriquecer apenas alguns.
É este poder que escolhe políticos e ajuda a elegê-los, que escolhe governantes ou ajuda a derrubá-los, que torna a justiça ineficaz, que, repito, apodrece o País com corrupção e que ajuda a manter um imenso esquema que impede o desenvolvimento de Portugal e mantém uma economia prisioneira de esquemas que matam a concorrência e a competitividade alimentando a desigualdade social.
Foi este esquema que arruinou bancos, que levou o Estado quase à falência, que se aproveitou das vantagens do euro enquanto estas duraram e, que, agora conspira para que sejam os pobres a pagar uma crise que eles provocaram. Os italianos têm uma máfia a que numa famosa série televisiva chamaram «Polvo». Nós temos um polvo tão mau ou pior do que as máfias italianas mas sem qualquer designação.
Basta recordar o esquema agora tornado público das relações perigosas entre uma sociedade secreta (Maçonaria) e políticos, empresários, etc.. Tudo a bem do tráfico de influências e das grandes negociatas.

6. Não sou quem o diz, é a Comissão Europeia: «Entre os seis países da UE mais afectados pela crise, Portugal é o único onde as medidas de austeridade exigiram um esforço financeiro aos pobres superior ao que foi pedido aos ricos». O que suscita uma questão: sendo o empobrecimento do País a estratégia de saída da crise, publicamente assumida pelo actual Governo, não se justificaria que a austeridade incidisse fortemente sobre os ricos até fazer deles pobres? Democratizando a pobreza, ao mesmo tempo que democratiza a economia, o Governo realizaria o suave e patriótico milagre da multiplicação dos pobres mais eficazmente do que limitando-se a empobrecer ainda mais os pobres que já são pobres.
Há milhares de portugueses que recorrem a instituições de solidariedade para ter pelo menos uma refeição diária. Há crianças que vão para a escola sem pequeno-almoço. Há idosos a viver da mendicidade.


7. O caso «Pingo Doce» aconteceu na mesma altura em que o Governo, «generoso e solidário», anunciava o aumento de 7 (sete euros) nas pensões dos mais pobres, mas tirava com a «outra mão»: cortes nas pensões e reformas abaixo dos 600 euros mensais. Para além dos já determinados «saques» dos subsídios de férias e de Natal (aos funcionários públicos, mas com possibilidade séria de vir a ser estendido ao sector privado), da redução do período de férias e, tudo indica, do aumento do horário de trabalho.
E que dizer do aumento das taxas moderadoras em todos os sectores da Saúde, que vai impedir que os mais desfavorecidos especialmente os mais idosos, por falta de meios económicos, vão passar a ir menos vezes aos médicos, correndo, nalguns casos, risco de vida?
E que dizer do corte nas comparticipações de muitos e muitos medicamentos?
E que dizer de uma ex-líder partidária, Manuela Ferreira Leite, que defende que quem tiver 70 anos de idade deve pagar o tratamento de hemodiálise, que nalguns casos chega aos 1900 euros/mês, quando, é sabido, a maioria desses idosos recebe pensões que vão dos 197 euros aos 419,22 euros/mês?
E que dizer do aumento dos custos dos transportes?
E que dizer do aumento do IVA que, indiscriminadamente, fez subir o preço da totalidade dos bens alimentares indispensáveis e veio deixar o sector da restauração à beira da falência?

8. Ao mesmo tempo, o País assiste à entrega em bandeja de prata, de cargos e funções remunerados principescamente, a quem já tem tudo de bom na vida.
O que aconteceu na EDP, com a nomeação de um antigo ministro das Finanças, é escandaloso. Um salário de 45 mil euros/mês a que junta uma pensão de reforma de 9.600 euros mensais? Uma afronta obscena.
E como havemos de compreender as nomeações para a empresa «Águas de Portugal» de dirigentes dos dois partidos do arco governativo, que têm processos judiciais por dívidas à entidade que agora vão administrar?
Como podemos olhar para o futuro quando membros do Governo «convidam» os jovens e desempregados a emigrar?
Como podemos dar credibilidade a um Governo, cujo ministro da Economia propõe a exportação de pastéis de nata?

9. Bem queria, repito, escrever com optimismo a primeira crónica do ano. Mas os factos que deixo descritos dizem-me para não ser utópico nem «ilusionista». É que, com a desculpa de que o défice de 2012 deverá ser de 5,4% (uma parte do fundo de pensões da banca teria sido desviado para pagar dívidas dos hospitais), estão na calha novas medidas de austeridade. Dito de outra forma: vêm aí medidas cada vez mais gravosas.
Não obstante este cenário — o aumento da pobreza, do número de desempregados, da fome — atrevo-me a desejar aos leitores e á minha terra votos de um 2012 o melhor possível!
Que este nosso Portugal, que já foi Império, que deu novos mundos ao Mundo, consiga resistir às vicissitudes, derrotar a adversidade e continue a ser um exemplo de coragem. 


Vasco Rodrigues  "artigo gazeta  janeiro 2012"

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