ALA e «a vida das mulheres».
«O que me aconteceu que não me apetece
fazer amor com o meu marido? As minhas amigas garantem que ao fim de cinco anos
de casada é inevitável, a ideia vai deixando de exaltar-nos, até se continua a
ter prazer mas não é a mesma coisa, se em vez do meu marido fosse outro
qualquer era igual, o tempo mata o entusiasmo e o desejo mas, em compensação,
aparecem outras alegrias, sobretudo o facto de ter uma família, uma certa paz,
uma rotina no fim de contas agradável, um sentimento de estar protegida, de
segurança, de estabilidade embora com os homens nunca se saiba, tão infantis,
tão à mercê de entusiasmos, caprichos, qualquer par de pernas os transtorna, as
raparigas mais novas põem-nos a ferver mas a segurança e a estabilidade, ainda
que precárias às vezes, existem de facto, claro que há separações, divórcios,
etc., porém a estabilidade e a segurança, uma certa estabilidade e uma certa
segurança existem de facto e depois, uma vez a meio da semana e outra ao fim de
semana, lá vem a mãozinha, a perna, o corpo todo, é agradável sem ser muito
bom, aquela paz do depois sossega a gente e, para além do sossego, o alívio de
saber que por uns dias teremos descanso, jantares com amigos, a televisão, o
jornal, a vida é isto, quanto ao fazer amor umas ocasiões é agradável, outras
nem tanto, a partir de um certo tempo em comum as coisas tendem a passar-se
mais ou menos da mesma maneira, não há grandes variações, não há acrobacias, acabam
e levantam-se logo com a desculpa do chichi, do copo de água, das crianças que
podem ouvir
(ouvir o quê se acabou?)
parecem aborrecidos connosco, parecem
fartos, não respondem, resmungam, não conversam, ficam calados no sofá ou
telefonam a um colega do emprego para combinar um jantar a quatro, há quantos
meses não jantamos sozinhos, há quantos meses não me beija sem segundas
intenções, só por beijar, não me diz nada terno, não me pega na mão, na semana
passada perguntei-lhe
- Gostas de mim?
respondeu
- Estou aqui não estou?
parecia que admirado com a pergunta, se
ponho um vestido novo anima-se um bocado porque me tornei outra e é a outra que
lhe interessa, não eu, a mesma reacção com brincos grandes, mais maquilhagem,
saltos altos, a quem é que apetece fazer amor afinal, a mim, a ele, é evidente
que não me interessam outros, nem olho, o actor de uma série de televisão mas
isso um entusiasmo vago, um
- Como seria se
que conforme aparece se esfuma, quando
vamos no carro já me aconteceu pensar no actor, uma espécie de pergunta, porque
não chega a pergunta
- Como se seria se
e passa, o meu marido não gosta de
conversar enquanto conduz ele que ao princípio conversava imenso
- Não me desconcentres que só temos seguro
contra terceiros pergunto-me se o actor me daria atenção ou ao cabo de cinco
anos o mesmo, suponho que o mesmo ou antes tenho a certeza que o mesmo, pelo
que oiço não há-de haver muitas diferenças entre eles, porque razão nós as
mulheres não somos felizes, quer dizer até podemos ser felizes mas não somos
felizes felizes e muito menos felizes felizes felizes, também não somos
infelizes, é um estado de alma assim assim que o facto de termos uma família
vai compondo, uma família, a casa paga, os electrodomésticos pagos, tudo pago,
chegarmos juntos para comer nos meus pais que nem sonham que não me apetece
fazer amor com o meu marido, até continuo a ter prazer mas não é a mesma coisa,
nem pensam nisso em relação a mim, detestam pensar nisso em relação a mim
porque continuo a ser menina para eles, se a minha mãe
- Está tudo bem entre vocês? respondo logo
que está tudo bem, não se preocupe, nunca esteve tão bem e depois os miúdos
graças a Deus são óptimos, tive imensa sorte, sabia, não trocava o que tenho
nem por uma mina de ouro, a minha mãe, desconfiada
(aquele instinto das mulheres que ela,
apesar dos setenta e três anos, ainda não perdeu)
- Palavra de honra?
enquanto o meu pai e o meu marido jogam às
damas e nós na cozinha, em voz baixa, vejo-os daqui debruçados para o
tabuleiro, no caso de perguntar à minha mãe e não pergunto, é evidente
- Está tudo bem entre vocês?
ela de súbito quieta, da minha idade e
quieta, idêntica a mim
- Está tudo bem, não te preocupes
e não está tudo bem pois não, diga lá,
nunca esteve tudo bem e agora é tarde para recomeçar a vida, filha, repara no
meu corpo, no meu cabelo, nas minhas pernas, na minha cara, na minha pele,
repara como envelheci, nem acredito quando me vejo ao espelho, ao nasceres
pensei
- Acabou-se
e desisti, percebes, desisti, mas aparte
ter desistido tudo bem, viste o actor daquela série da televisão, filha, talvez
não acredites mas já me aconteceu que, não ligues, era uma conversa parva, o
que é que me deu hoje, há alturas em que me torno uma adolescente tonta, que
ridículo, uma adolescente de setenta e tal anos, que palermice, há alturas, lá
ia eu continuar com a conversa, o que me preocupa é que tu estejas bem, a única
coisa na vida que me preocupa é que tu estejas bem, o resto não tem
importância, que tu estejas bem por mim que não espero seja o que for, passou
muito tempo, entendes, demasiado tempo e não há tempo para mim hoje em dia,
chega acontecer, vê só a estupidez, chega a acontecer imaginar-me morta e não é
inteiramente desagradável, calcula, porque, pensando um bocadinho nisso, desde
que me tornei mulher quando é que foi bom viver?».
Crónica de António Lobo Antunes. 23 de Agosto de 2012. Visão.
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